sábado, 19 de julho de 2014

Dark Horse

F
altavam exatos vinte e cinco luas para o casamento de Fausto com uma linda signorina chamada Jullyanne Drago, filha de um dos nove nobres de nosso reino, o amargo Giulliano Drago, o mais influente conde do principado, o Conde Drago >> Ser ciccione, como foi apelidado pela classe subalterna da cidade<< era um velho baixinho e rechonchudo, o rosto arredondado e coberto por rugas profundas, que se pronunciavam ainda mais pelo seu jeito rabugento, o nariz lhe tomava metade da cara, e faltava um punhado de dentes em sua boca, isso explicaria o fato de cuspir ao falar, o pior era a imensa peruca que ostentava com orgulho, pois, era um sinal de nobreza, o fato era que o acessório deixava-o com a imagem, de um modo geral, achatada, o que tornava sua figura um tanto quanto engraçada, mas muito ridícula.
         Este nobre conde de características tão desagradáveis, concedera a mão de sua filha, a bela Jullyanne a Fausto, o mais novo cavaleiro da corte. Disse bela, pois foi assim que retrataram a figura de Ms. Drago no quadro pintado a óleo que foi entregue a meu irmão depois do pagamento do dote, a formosa dama da tela, tinha a pele clara e radiante, os olhos eram castanhos e gentis, a face corada e um sorriso tímido podia ser percebido em seus lábios rosados e pequeninos, maravilhosos cabelos loiros caiam sobre o colo numa trança delicada e perfeita, eu diria que a afetuosa criatura estampada na pintura fora adotada se for compará-la ao ogro que era seu pai.
Fausto era um rapaz cobiçado pelas moças da cidade,  acabara de fazer a iniciação e os votos de lealdade na cavalaria - a Ordem das Adagas Negras – e com isso recebera um bom pedaço de feudo junto com o cargo, onde já possuía servos que trabalhavam apenas no cultivo de grãos e cereais. Ele era magro, mas tinha um físico em forma o que combinava com sua altura avantajada, a pele queimada pelo sol não destoava com o tom dourado de seus longos cabelos, os olhos eram tão negros quanto os meus, esta era a única coisa que tínhamos em comum: olhos extremamente negros. Era um mestre na esgrima e cavalgava como ninguém, me ensinara tudo o que sabia inclusive a ler e a escrever além de um pouco de latim. Treinávamos todos os dias e meu tutor era por demais exigente. Fazíamos tudo em segredo. Absolutamente ninguém sabia do verdadeiro treinamento que Fausto me concedera, pois era estritamente proibido às mulheres realizarem tarefas como caça, montaria ou que dominassem técnicas de guerra. A esgrima, em particular, era exclusiva para os homens. Qual o castigo para a dama que ousasse desobedecer tais proibições? Morte na forca! Então meu treinamento era algo que eu e Fasto guardávamos a sete chaves.
No meio do treino de doma estava exausta pelo esforço que desprendi para tentar amansar a fera em forma de cavalo que Fausto havia me dado de presente. Batizei o alazão de Furioso, havia mais de duas semanas que eu vinha tentando montar no animal e nenhum progresso havia obtido.
 – Os cavalos mais xucros se tornam os mais fieis depois de domados.
Dizia meu irmão tentando me animar.
Por mais que eu tentasse não conseguia conquistar a confiança do cavalo que era um belo exemplar de um Árabe puro-sangue. Uma coisa é certa esta raça é muito antiga, provém do Oriente e foi criada em zonas desérticas ou semidesérticas.
Os cavalos Árabes são os pais de todas as raças, e o sangue dos seus gloriosos antepassados corre nas veias de quase todas as raças de cavalos modernos. O Árabe de puro-sangue foi utilizado durante os tempos para melhorar e afinar muitas raças.
O deserto moldou o cavalo Árabe, durante a dinastia dos Califas de Bagdade. Durante quase mil anos de vida nômade em meios hostis o cavalo Árabe foi-se transformando. A vida ao lado dos beduínos os converteu em especialistas em correr longas distâncias em pouco tempo. Foi assim que ganhou a sua velocidade e robustez.
Estes cavalos são rápidos, manejáveis, valentes e resistentes. O Árabe de puro-sangue tem uma pele muito fina. Possui um porte de 145 a 155 cm em média e a sua pelagem pode ter qualquer tipo de cor, sendo o preto a cor mais rara para a raça e Furioso era o cavalo mais negro que eu tinha visto na vida. Seu pelo era sedoso, o seu pescoço arqueado com uma cabeça particularmente expressiva e um perfil côncavo. O seu peito era firme e descoberto, as suas costas eram curtas e amplas e a sua traseira era alta e também firme, era certamente o melhor cavalo que alguém poderia possuir e era extremamente grata a meu irmão por este presente que ele insistia em chamar de mimo.
- Continuarei com o adestramento amanhã.
Prometi, ainda ofegante pelo esforço desprendido nas tentativas de conseguir que Furioso não me visse como uma ameaça, tentativas que continuavam frustradas. Fausto apenas assentiu.
- Falta menos de um mês, como se senti?
Fausto expressou confusão, como se não soubesse do que eu estava falando.
- Seu casamento, está ansioso?
- Ah! É isto? Bem, não sei o que esperar, nunca a vi não estou apaixonado e não a amo a única coisa que tenho da senhorita Drago é aquela pintura que você já conhece.
- Bem – parei por um minuto para escolher melhor as palavras e por fim indaguei - e isto não te assusta?
- Luna, apenas você me assusta – disse ele com ar brincalhão – muito pelo contrário maninha, estou frustrado.
- Por quê?
- Porque eu gostaria de ter escolhido minha esposa sozinho e vejo que esta união traz benefícios apenas para o nosso amado pai e eu terei que dormir com uma completa estranha pelo resto de meus dias, neste ponto invejo os camponeses que se casam por amor.
- Isso me parece medo – Disse em tom de desafio.
- Não é – prosseguiu insistindo – mas é como se eu não tivesse controle sobre a minha vida e eu dou o nome de frustração a isto.
- Sentirei sua falta – disse com os olhos marejados.
- Não seja chorona, seu treinamento vai continuar da mesma forma. Não vou te abandonar, prometo-te!
Sorri para ele e fomos para casa, pois já estava na hora da minha aula de latim.








Ps. Dedico este trecho a minha doce amiga Viviane Vicino. Gratidão!


sexta-feira, 18 de julho de 2014

À primeira vista...


E
nfim amanheceu. Era um domingo surpreendentemente claro para o mês de junho, chegara o dia mais esperado da vida de Fausto, o bendito casamento com Jully, já havia alcunhado assim minha futura cunhada, gostava da moça antes mesmo de conhecê-la e devo confessar que também estava ansiosa. Fausto suava como nunca, estava pálido e não parava de tremer.
- Oh céus, essa hora não passa.
Dizia ele andando de um lado para o outro em passos curtos e apressados. Era encantador vê-lo tão fragilizado, tão receoso pela demora, a cerimônia estava com uma hora de atraso e todos os convidados estavam à espera no nosso jardim.
- Acalme-se Fausto, pensei que você estive “frustrado” com esse casamento – disse imitando seu tom de voz – daqui a pouco fará buracos no gramado...
Ainda estava o repreendendo quando ouvi se aproximar ao longe várias carruagens.
- Fausto, se apresse!!!
Gritou papai.
Fausto parecia ainda mais pálido e seu nervosismo lhe conferia um charme em especial, ele trajava a honrada vestimenta preta de um cavaleiro da  Ordem das Adagas Negras, na parte de trás da capa que pendia até ao chão, o brasão do reino de Zanette, um lince com duas espadas cruzadas, ainda não descobri o porquê desse símbolo, já que linces não são animais do nosso país e nem de países próximos a nós, mas algo me dizia que em breve eu descobriria muito mais do que apenas aquilo.
Fausto trazia embainhada sua espada, amuleto quase que inseparável, mas que no contexto de seu rosto, porte físico e trajes davam uma harmonia e demostrava a seriedade do verdadeiro herói que ele era.
O Arauto anunciou a chegada de Lord Giulliano e sua família, um comboio de cinco carruagens luxuosíssimas se aproximava lentamente, todos pasmaram ao ver o quão poderoso era o seu clã, os cavalos cavalgavam em uma sincronia perfeita enfileirados em linha reta. O primeiro condutor assoprou uma espécie de apito, no mesmo instante todas as carruagens pararam.
Ao centro, bem de frente ao tapete, estava a mais bela carrozza dentre as outras. Era do modelo Coche, extremamente dourada e perfeita para a ocasião. Consistia em uma caixa suspensa através de correias de couro. Assim, sem o contato direto da caixa com as rodas, evitava a trepidação incômoda aos passageiros.
As caixas eram idênticas às utilizadas nos carros medievais sem suspensão, com cobertura de arcos ultrapassados, que formavam igualmente as paredes laterais. A caixa era aberta, mas estava protegida por um veludo em um tom de vermelho sangue, como não tinha portas o seu acesso se fazia por uma abertura existente em cada um dos lados, através de um estribo.
Da primeira viatura saíram o senhor Drago e sua esposa, esta logo se juntou a meus pais no altar e o senhor, o Conde sisudo, ficou próximo a coche central. Percebi que o restante das pessoas que compunham a caravana eram os cavaleiros do exercito particular do fidalgo. Os militares se organizaram em pares, formando um corredor, cada um de um lado, todos fardados e cada um empunhando a sua espada.
Em sinal de respeito e honra os cavaleiros em um alinhamento perfeito bateram continência dizendo:
- Bendita seja a ascendência da família Manzzote!!!
Neste instante senti meus pelos eriçarem de emoção e lágrimas brotaram em meus olhos, aquilo foi realmente emocionante e pude perceber que todos os presentes também tiveram a mesma sensação que eu.
Depois de uns instantes, os dois que estavam próximos à carruagem abriram o tecido, de dentro saltaram dois trompetistas. Os instrumentos de sopro eram de marfim puro, com um bocal em forma de taça formando uma única peça. Eles começaram a anunciar a chegada da noiva, um passo de cada vez tocando uma melodia que não consigo mais me lembrar, então ao chegarem ao meio do caminho pararam e deram um giro de 360 graus.
Neste instante, o oficial mais antigo deu o comando para que os demais levantassem suas espadas virando um de frente para o outro cruzaram as pontas de suas armas, formando um primoroso teto de aço. E então o mais esperado momento aconteceu, Jully apareceu e a visão que tive me deixou maravilhada.
 O vestido era lindo como de uma rainha francesa, muito longo e  rodeava de forma perfeita as curvas da moça, feito de cetim num tom delicado de marfim, grande mangas boca de sino caiam em três babados delicados que passava da linha do joelho, o decote seguido de amarras deixava à mostra a pele do colo, um estilo surpreendentemente único, em cima vinha um corset azul real com detalhes em ouro que foi alongado até cobrir o vestido inteiro e morrer numa calda de quase dois metros, no pescoço ostentava um colar em ouro branco com um pingente de lápis lazuli, a pedra tinha ranhuras douradas próprias da joia que era envolta pelo mesmo ouro da correntinha. Na orelha uma gota encravada por diamantes que brilhavam muito, mesmo estando sob o véu em renda azul celeste a cor símbolo da pureza.
O dia estava lindo e combinava muito com a figura gloriosa de Jully, e Fausto não escondeu a admiração ao ver sua prometida descendo da carruagem aveludada, o sorriso da jovem foi sincero ao trocar o primeiro olhar com Fausto, ela tropeçou na barra do vestido ficando ruborizada pelo pequeno deslize, mas logo o conde Giulliano apoiou-a e a conduziu até Fausto que a tomou pela mão e se dirigiu ao altar.
Com o Concílio de Westminster em 1076 e por tradição os casamentos deveriam ser realizadas com a benção de um sacerdote, mas com o frágil estado de saúde de nosso amado pároco, Eufebio Bolcchi, ficou a cargo do jovem e recém chegado padre Girardo presidir a cerimônia matrimonial.
Fausto voltou a seu tom normal de pele, mas estava diferente agora. Não sei dizer, agora ele tinha um brilho no olhar que eu desconhecia e por mais incrível que pareça, estava mais bonito que antes, tinha uma felicidade que lhe saltava aos olhos. E neste momento sosseguei meu coração, pois percebi que eles ficariam bem e seriam muito felizes.
Após a cerimônia e a troca de alianças a festa começou tinha muita comida, muito vinho e a música não poderia faltar, então Fausto e Jully fizeram as honras da primeira dança, enquanto todos olhavam admirados pela beleza que ambos possuíam.
-Eu já sei teu nome signora – disse Fausto ao girar sua esposa - mas eu quero que tu me digas. – completou trazendo-a para junto de seu corpo.
- Jullyane Mansotti meu signore - falou isso timidamente, ficando levemente corada.
-Devo revelar-te que fiquei extremamente feliz em conhecê-la.
- Digo o mesmo Sir. Mansotti.
- Vejo que tens pouca intimidade com as palavras.
- Apenas não quero cansar-te os ouvidos, mas saiba que hoje é o dia mais feliz de minha vida.
Respeitosamente Fausto tomou-lhe a mão esquerda, fez uma reverência pomposa e então deu um carinhoso beijo na aliança que há instantes atrás ele mesmo colocara no anelar de sua senhora.
- O prazer é todo meu – falou com brasa nos olhos.
Todos os presentes ofereceram uma salva de palmas em homenagem aquele sentimento que começou a brotar no coração daqueles jovens.

O poder das orquídeas...


N
aquela época, o banho em demasia era considerado prejudicial à saúde. E “banhar-se em excesso” significava dizer mais de duas ou três vezes AO ANO! E como meus pais, em especial mamma, eram muito supersticiosos banhávamos apenas uma vez a cada 365 dias, lembrando-me deste detalhe não consigo digerir o porquê de acreditarmos em tamanha baboseira, mas era assim que as coisas funcionavam.
O pior de tudo era que os banhos eram em uma única tina, cheia de água quente. Primeiro vinha o chefe da família, que tinha o privilégio de banhar-se em água limpa. Depois, sem trocar a água, era a vez dos outros homens da casa, por ordem de nascimento. Depois, vinham as mulheres, também conforme a idade e por fim, as crianças e o bebês.
              Na minha casa éramos quatro, mas de qualquer sorte, ou azar, eu sempre ficava por último quando a água já estava fria e cheia de fezes humanas, de animais, terra, musgo, gordura corporal, suor, sangue seco e todo o tipo de sujeira acumulada por mais de um ano. Vida difícil não acha?
Era véspera do tão esperado casamento arranjado de meu querido irmão e nosso banho anual foi adiantado em mais de dois meses, nossa casa estava uma loucura, os criados corriam de um lado para o outro e o clima não era de alegria estava mais tenso que no dia em que Fausto foi iniciado na cavalaria do reino.
- Tudo deve estar em perfeita harmonia.
Gritava mamãe como uma louca aos quatro ventos, ela estava com os nervos a flor da pele e estressava todos os que chegavam perto dela.
- Pare de choramingar, você só irá descansar quando eu achar que tudo está perfeito – reprendia uma criada que estava fazendo os arranjos florais.
Na hora do jantar nos mantivemos em silêncio, era perceptível a apreensão em todos, Fausto estava com o olhar angustiado e distante, foi o primeiro a se retirar da mesa indo direto para o jardim, preocupada também me retirei e o segui.
Ele estava observando a ornamentação para a cerimônia. Como era de costume entre os nobres a celebração da união aconteceria ali, no nosso quintal, onde Fausto e eu passamos toda a nossa infância brincando. Estava todo ornamentado com flores das mais diversas espécies que foram encomendadas do reino de Giovanni Vittorioso, principado ao sul da Itália atual, todas em uma perfeita harmonia de cores que era perceptível mesmo sob a luz do luar. No altar havia um arco recoberto por rosas vermelhas e dele saía um tapete de veludo verde que acabava no portão de entrada e por todos os lados podiam ser vistos alabastros ostentando os brasões das duas famílias simbolizando a união que estava próxima.
Olhei tudo aquilo maravilhada e senti certa pontada de inveja, como eu gostaria de estar no lugar de Jullyanne e casar-me com um cavaleiro honrado e temido como Fausto, não que ser temido seja uma grande qualidade, mas seu poder daqui a alguns anos se tornará imenso, já que ele é o braço direito do nosso rei e sinto que seu nome percorrerá por todos os principados próximos e distantes, “ah Jully, faça este homem feliz!”. Devaneei.
- O que quer?
Perguntou Fausto, trazendo-me de volta terra.
- Vim trazer-te um mimo. – Sorri para ele.
Com um sorriso amarelo Fausto me sorriu de volta.
- Vindo de você não pode ser boa coisa. – Brincou.
Mostrei-lhe a língua e continuei com tom de sabichona.
- Você sabia, adorado irmão, que por toda a Europa a perfumaria está adormecida, pois os perfumes são considerados profanos sendo estes apenas reservados ao culto?
Fausto não esboçou qualquer reação, então continuei.
- Pela sua cara de paisagem suponho que seja sim a resposta. Mas o que você não sabia é que em nosso mosteiro o novo padre, monsenhor Lucato, mantém uma farmácia e lá ele manipula ervas aromáticas.
Estendi a mão que continha um pequeno frasco na palma, entreguei-o a Fausto que o pegou com desconfiança.
- É um perfume de orquídeas negras. – Afirmei.
- E para que diabos isso me serve? – Indagou-me.
- Ouvi dizer que tem propriedades afrodisíacas, dê para Jullyanne usar amanhã à noite, talvez assim a paixão desperte e desta forma tudo será mais agradável para ambos, já que você anda tão nervoso com a situação...
Fausto interrompeu minha tagarelice dando-me as costas, apenas assentiu em agradecimento e guardou o delicado vidrinho no bolso.


terça-feira, 4 de setembro de 2012

A Vila de San Francesco



Villa de San Francesco - 1469

S
an Francesco, no ano de Nosso Senhor de 1469 era uma pequena cidade ao norte da Itália pré-renascentista, cercada por uma alta muralha, nascia no meio de um vale e isso nos transmitia uma sensação de segurança, as casas eram pequenas e padronizadas, as ruas se organizavam em torno da praça da igrejinha de San Lorenzo fazendo parecer que a fé era a principal preocupação entre meus concidadãos, o interior da capelinha era pequeno, mas todo ornamentado em ouro puríssimo, imagens de Santos vigiavam o altar e um afresco da santa ceia na abóboda circular dava ao interior do santuário um ar bastante sofisticado os vitrais que rodeavam a construção contavam a história da paixão de Cristo, nosso pároco era o padre Eufebio Bolcchi, um senhor de muita fé de uns sessenta e muitos anos que era respeitado por todos, seu estado de saúde estava bastante debilitado e fazia trinta luas que não celebrava mais as missas, seu substituto já havia chegado a cidade, Girardo Lucato, um jovem de vinte anos, muito bonito devo dizer, aparentava ser de origem francesa, mas seu sotaque era de um italiano nativo, falavam com fé sobre a ira e os castigos de Deus sobre os pecadores, mas algo em seu discurso não me convencia, no convento atrás da igreja moravam também dois monges o irmão caçula do velho pároco, Zenobio Bolcchi e o jovenzinho Benito Fregoso, eles manuscreviam a Bíblia, alfabetizavam os nobres da região e eram também eles os responsáveis por catequisar todos da cidade e dos feudos mais próximos.
San Francesco era o lar de pessoas aparentemente comuns, e estávamos ainda muito cravados na tradição feudal e essa era ainda a principal atividade econômica, o comércio era uma tímida fonte de renda, a classe burguesa ainda se mantinha em menor número e sem nenhum poder político, apenas alguns senhores feudais largavam suas relações de vassalagem na esperança de progresso na cidade, mas logo se arrependiam por não terem o apoio de vossa Altezza Eric Sturdza, que por sua vez, sempre fora um príncipe sombrio, que nunca era visto entre seus governados, nem nos dias de comemoração e festivais que eram tradicionais e corriqueiros entre nosso povo, agia como uma sombra sobre a Itália, governava seu território com tirania e punhos de aço, diziam as más línguas que tinha vendido a alma ao demônio em troca de poder e riqueza, ninguém sabia nada de concreto sobre ele e a família, o irônico é que ainda tinha certa fama de ser piedoso às vezes, seu imponente castelo ficava ao alto da montanha mais próxima de nós, de lá tinha uma visão bastante privilegiada da cidade, dos feudos, do rio calante e de uma parte extensa do principado vizinho, era um ponto bastante estratégico, pois evitava ataques surpresa dos muitos inimigos que possuía, sua fortaleza era guardada por um poderoso exército que era comandado por seu filho, um rapaz que nunca se ouvira falar no nome até aqui, com seus duques e condes mantinha uma forte e aparentemente indissolúvel aliança, dentre esses nobres meu pai também se encontrava, mas nunca nos dissera nada sobre os “trabalhos extras“ que fazia vez ou outra para nosso governante, a principal característica dessa “sociedade” era a descrição de todos os que estavam envolvidos nela, mas deixemos esses detalhes para mais adiante.

Eu cresci ali, naquela cidadela pacata e isolada do restante do mundo. Tinha 16 anos, minha aparência física não era das mais atraentes, pois eu era completamente diferente de todas as outras pessoas do vilarejo. Minha pele muito branca, clara como a neve que cai no inverno, em contrapartida meus olhos e cabelos são negros como as noites sem lua fazendo um contraste com minha cútis pálida. Meu rosto é comum, mas meu corpo era forte e delgado graças aos exercícios que praticava com Fausto, mas mesmo assim não era o tipo de pessoa que alguém olharia e diria: - Nossa! Como ela é linda! – não! Isso passava longe de acontecer. Eu chamava mais atenção pela inteligência do que pela beleza e isso me bastava para arrancar olhares curiosos dos jovens do meu povoado.

Prefácio

 Éric Sturdza & Sophie West 


T
alvez seja tarde para reconhecer o quanto fui feliz, mas nunca será tarde, por mais distante que se torne, relembrar os momentos que ficaram em minha memória. Gravarei nessas páginas finitas a prova de que o amor entre dois seres pode ser perene. Registrarei todos os fatos que selaram na minha alma eternamente o nome do meu amado. 
Vou começar a descrever um pouco antes de conhecê-lo, não que minha vida tivesse sentido antes, mas esses dias que prescindiram nosso encontro foram importantes para que eu passasse a existir, a me sentir viva.
A história do meu renascimento causava arrepios em quem a ouvia e mamma nunca tocara com conforto no assunto. Parecia que escondia algo toda vez que eu a questionava sobre isso. 
Era 18 de setembro de 1454, uma segunda-feira de manhã. O tempo havia virado drasticamente na véspera, posto que grossas nuvens enegreceram o firmamento e o sol, intimidado, escondeu-se nas cortinas negras que pairavam sobre a terra. Nesse cenário a chuva reinava soberana, contudo o vento se apresentou para que ambos fizessem um dueto. Ele, para impressioná-la, fez o seu trabalho com violência e maestria e os dois juntos pareciam um casal apaixonado tamanha a intensidade que se entrelaçavam. A chuva se entregava ao sabor do vento, e esse, em resposta, cantava hinos em homenagem a sua amada.
A tempestade só piorava, agitava a casa com força e assustava os animais no celeiro. Bichos peçonhentos caiam do telhado e trovões cortavam a abóbada celeste como se lançassem uma maldição sobre a terra. Parecia ser noite em pleno dia!O parto? bom.... era demasiadamente arriscando, tendo em vista que a única pessoa adulta na casa naquele momento, além da mamma... sim, era o papà. Assim, minha vida e a da senhora Innocenza Mansotti estava nas mãos do digníssimo signore barão Gennaro Masotti, que devo ressalvar, jamais havia ajudado em parto algum, nem de seus animais, quem dirá de uma pessoa. Mas a ocasião não exigia pompa, não exigia delicadeza, e, pelo modo desesperador que o tempo escoava, destreza e conhecimento era dispensáveis também.
Lembrando das histórias que eram contadas em tom de brincadeira, efetivamente, nunca soube como um homem broco e sem a menor habilidade conseguiu, aparentemente sozinho, intervir com sucesso no desprenhar de um ser humano. Quando questionados meus pais se entreolhavam e buscavam mudar rapidamente de assunto, alegando que donzelas não deveriam se ocupar com isso.
“Parecia que os anjos do apocalipse já haviam anunciado os fins dos tempos e desceram à terra para iniciar o juízo final” dizia meu irmão com certa ironia sobre o ocorrido. O honrado cavaleiro, Fausto Masotti, >>que na época só tinha três anos<<, lembrava com certo desdém do fatídico dia. 
Apesar de todo o enredo fantasmagórico que envolveu meu nascimento, nunca me senti estranha em relação a isso. Mas, em uma certa medida, me sentia rejeitada pelos meus pais e os criados me olhavam com medo. Isso sempre me foi perceptível, uma vez que ouvia rumores sobre eu aparentar ter um pacto de sangue com o demônio e por isso tinha olhos extremamente negros. Dessa forma, cresci temerosa dos sobrepujantes castigos da Igreja Católica.
Ao chegar na puberdade passei a ter sonhos aterradores. Eram fragmentos de coisas, pessoas e lugares que jamais presenciei. Mas eu sabia que não poderia contar a ninguém o que me atormentava ou seria enforcada e depois queimada como faziam com pessoas que se afastavam das rigorosas regras divinas.
A minha angústia silenciosa só me deixou ainda mais longe de descobrir minha essência. Mas isso não impediu que eu caminhasse de olhos vendados para o penhasco das verdades mais dolorosas sobre minha existência. O que tornou toda dor suportável e angustiantemente deliciosa, fora a chegada de um enigmático fidalgo do clã Sturdza ao recatado vilarejo de San Francesco.