terça-feira, 4 de setembro de 2012

A Vila de San Francesco



Villa de San Francesco - 1469

S
an Francesco, no ano de Nosso Senhor de 1469 era uma pequena cidade ao norte da Itália pré-renascentista, cercada por uma alta muralha, nascia no meio de um vale e isso nos transmitia uma sensação de segurança, as casas eram pequenas e padronizadas, as ruas se organizavam em torno da praça da igrejinha de San Lorenzo fazendo parecer que a fé era a principal preocupação entre meus concidadãos, o interior da capelinha era pequeno, mas todo ornamentado em ouro puríssimo, imagens de Santos vigiavam o altar e um afresco da santa ceia na abóboda circular dava ao interior do santuário um ar bastante sofisticado os vitrais que rodeavam a construção contavam a história da paixão de Cristo, nosso pároco era o padre Eufebio Bolcchi, um senhor de muita fé de uns sessenta e muitos anos que era respeitado por todos, seu estado de saúde estava bastante debilitado e fazia trinta luas que não celebrava mais as missas, seu substituto já havia chegado a cidade, Girardo Lucato, um jovem de vinte anos, muito bonito devo dizer, aparentava ser de origem francesa, mas seu sotaque era de um italiano nativo, falavam com fé sobre a ira e os castigos de Deus sobre os pecadores, mas algo em seu discurso não me convencia, no convento atrás da igreja moravam também dois monges o irmão caçula do velho pároco, Zenobio Bolcchi e o jovenzinho Benito Fregoso, eles manuscreviam a Bíblia, alfabetizavam os nobres da região e eram também eles os responsáveis por catequisar todos da cidade e dos feudos mais próximos.
San Francesco era o lar de pessoas aparentemente comuns, e estávamos ainda muito cravados na tradição feudal e essa era ainda a principal atividade econômica, o comércio era uma tímida fonte de renda, a classe burguesa ainda se mantinha em menor número e sem nenhum poder político, apenas alguns senhores feudais largavam suas relações de vassalagem na esperança de progresso na cidade, mas logo se arrependiam por não terem o apoio de vossa Altezza Eric Sturdza, que por sua vez, sempre fora um príncipe sombrio, que nunca era visto entre seus governados, nem nos dias de comemoração e festivais que eram tradicionais e corriqueiros entre nosso povo, agia como uma sombra sobre a Itália, governava seu território com tirania e punhos de aço, diziam as más línguas que tinha vendido a alma ao demônio em troca de poder e riqueza, ninguém sabia nada de concreto sobre ele e a família, o irônico é que ainda tinha certa fama de ser piedoso às vezes, seu imponente castelo ficava ao alto da montanha mais próxima de nós, de lá tinha uma visão bastante privilegiada da cidade, dos feudos, do rio calante e de uma parte extensa do principado vizinho, era um ponto bastante estratégico, pois evitava ataques surpresa dos muitos inimigos que possuía, sua fortaleza era guardada por um poderoso exército que era comandado por seu filho, um rapaz que nunca se ouvira falar no nome até aqui, com seus duques e condes mantinha uma forte e aparentemente indissolúvel aliança, dentre esses nobres meu pai também se encontrava, mas nunca nos dissera nada sobre os “trabalhos extras“ que fazia vez ou outra para nosso governante, a principal característica dessa “sociedade” era a descrição de todos os que estavam envolvidos nela, mas deixemos esses detalhes para mais adiante.

Eu cresci ali, naquela cidadela pacata e isolada do restante do mundo. Tinha 16 anos, minha aparência física não era das mais atraentes, pois eu era completamente diferente de todas as outras pessoas do vilarejo. Minha pele muito branca, clara como a neve que cai no inverno, em contrapartida meus olhos e cabelos são negros como as noites sem lua fazendo um contraste com minha cútis pálida. Meu rosto é comum, mas meu corpo era forte e delgado graças aos exercícios que praticava com Fausto, mas mesmo assim não era o tipo de pessoa que alguém olharia e diria: - Nossa! Como ela é linda! – não! Isso passava longe de acontecer. Eu chamava mais atenção pela inteligência do que pela beleza e isso me bastava para arrancar olhares curiosos dos jovens do meu povoado.

Prefácio

 Éric Sturdza & Sophie West 


T
alvez seja tarde para reconhecer o quanto fui feliz, mas nunca será tarde, por mais distante que se torne, relembrar os momentos que ficaram em minha memória. Gravarei nessas páginas finitas a prova de que o amor entre dois seres pode ser perene. Registrarei todos os fatos que selaram na minha alma eternamente o nome do meu amado. 
Vou começar a descrever um pouco antes de conhecê-lo, não que minha vida tivesse sentido antes, mas esses dias que prescindiram nosso encontro foram importantes para que eu passasse a existir, a me sentir viva.
A história do meu renascimento causava arrepios em quem a ouvia e mamma nunca tocara com conforto no assunto. Parecia que escondia algo toda vez que eu a questionava sobre isso. 
Era 18 de setembro de 1454, uma segunda-feira de manhã. O tempo havia virado drasticamente na véspera, posto que grossas nuvens enegreceram o firmamento e o sol, intimidado, escondeu-se nas cortinas negras que pairavam sobre a terra. Nesse cenário a chuva reinava soberana, contudo o vento se apresentou para que ambos fizessem um dueto. Ele, para impressioná-la, fez o seu trabalho com violência e maestria e os dois juntos pareciam um casal apaixonado tamanha a intensidade que se entrelaçavam. A chuva se entregava ao sabor do vento, e esse, em resposta, cantava hinos em homenagem a sua amada.
A tempestade só piorava, agitava a casa com força e assustava os animais no celeiro. Bichos peçonhentos caiam do telhado e trovões cortavam a abóbada celeste como se lançassem uma maldição sobre a terra. Parecia ser noite em pleno dia!O parto? bom.... era demasiadamente arriscando, tendo em vista que a única pessoa adulta na casa naquele momento, além da mamma... sim, era o papà. Assim, minha vida e a da senhora Innocenza Mansotti estava nas mãos do digníssimo signore barão Gennaro Masotti, que devo ressalvar, jamais havia ajudado em parto algum, nem de seus animais, quem dirá de uma pessoa. Mas a ocasião não exigia pompa, não exigia delicadeza, e, pelo modo desesperador que o tempo escoava, destreza e conhecimento era dispensáveis também.
Lembrando das histórias que eram contadas em tom de brincadeira, efetivamente, nunca soube como um homem broco e sem a menor habilidade conseguiu, aparentemente sozinho, intervir com sucesso no desprenhar de um ser humano. Quando questionados meus pais se entreolhavam e buscavam mudar rapidamente de assunto, alegando que donzelas não deveriam se ocupar com isso.
“Parecia que os anjos do apocalipse já haviam anunciado os fins dos tempos e desceram à terra para iniciar o juízo final” dizia meu irmão com certa ironia sobre o ocorrido. O honrado cavaleiro, Fausto Masotti, >>que na época só tinha três anos<<, lembrava com certo desdém do fatídico dia. 
Apesar de todo o enredo fantasmagórico que envolveu meu nascimento, nunca me senti estranha em relação a isso. Mas, em uma certa medida, me sentia rejeitada pelos meus pais e os criados me olhavam com medo. Isso sempre me foi perceptível, uma vez que ouvia rumores sobre eu aparentar ter um pacto de sangue com o demônio e por isso tinha olhos extremamente negros. Dessa forma, cresci temerosa dos sobrepujantes castigos da Igreja Católica.
Ao chegar na puberdade passei a ter sonhos aterradores. Eram fragmentos de coisas, pessoas e lugares que jamais presenciei. Mas eu sabia que não poderia contar a ninguém o que me atormentava ou seria enforcada e depois queimada como faziam com pessoas que se afastavam das rigorosas regras divinas.
A minha angústia silenciosa só me deixou ainda mais longe de descobrir minha essência. Mas isso não impediu que eu caminhasse de olhos vendados para o penhasco das verdades mais dolorosas sobre minha existência. O que tornou toda dor suportável e angustiantemente deliciosa, fora a chegada de um enigmático fidalgo do clã Sturdza ao recatado vilarejo de San Francesco.